“DIREITO COMPARADO
A influência do Direito francês no Direito brasileiro


O "Ano da França no Brasil", temporada cultural símbolo do bom momento que conhecem as relações entre os dois países, convida-nos à reflexão sobre a influência do Direito francês no Direito brasileiro.

Longe da simples importação de soluções jurídicas, esta reflexão nos leva à constatação de que o estudo do Direito francês reveste um duplo interesse. Primeiramente, pela possibilidade de expandir os horizontes e ousar descobrir os elementos característicos de outro país e de seu direito. Depois, todo estudo de um sistema estrangeiro traz para o observador novos conhecimentos sobre seu próprio ordenamento.  Com efeito, a comparação entre ambos deve conduzi-lo a adotar certa distância com relação à sua própria realidade. E observá-la com essa nova perspectiva permite melhor compreender como funciona, seus acertos e particularidades, as possibilidades de evolução e a dimensão dos riscos assumidos.

    Se este raciocínio é válido para os sistemas jurídicos de um modo geral, ele o é especialmente no que tange ao Direito francês, que possui a mesma raiz histórica que o Direito brasileiro. Herdeiros do Direito romano, são dois países de Direito escrito. Nessa qualidade, podem dialogar mais facilmente do que sistemas de "famílias jurídicas" diferentes. É verdade que as diferenças entre as ditas famílias jurídicas tendem a diminuir, mas essa tendência não retira o interesse da classificação nesta ou naquela tradição. Vale lembrar que a aproximação entre sistemas jurídicos está mais ligada ao conteúdo das regras jurídicas do que à maneira como o jurista raciocina. No último aspecto, as diferentes tradições guardam suas respectivas características, o que explica o fato de que os juristas brasileiros dialoguem mais facilmente com os franceses do que com os juristas originários do Commonwealth.

    O método de apreensão do fenômeno jurídico permanece similar entre o Brasil e a França, mas está longe de ser idêntico. Os franceses guardam uma afiliação mais forte à tradição de seu país. É bastante sintomático o fato de que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 integre a Constituição francesa atualmente vigente. Isso revela o apego que os juristas e os cidadãos franceses têm pelos valores tradicionais e históricos. Já no Brasil, o mesmo fenômeno não se reproduz. É difícil encontrarmos alguém que pretenda aplicar nos dias atuais alguma regra da Constituição de 1824. Temos um ordenamento que se formou por uma influência múltipla. Pelo fato da colonização portuguesa, guardou no seu íntimo um apego ao sistema jurídico dos países europeus, de um modo geral. Mas também se mostrou aberto a outros ordenamentos, como é o caso dos Estados Unidos da América, que tanto influenciaram a redação da Constituição de 1891.

    Outra peculiaridade do Direito francês consiste no emprego de expressões que se revelam mais sintéticas do que em outros direitos da Europa. Por exemplo, a noção de culpa (em francês, "faute") designa tanto a violação de uma certa obrigação de comportamento quanto um ato ao qual pode ser imputada a realização de um dano. Este exemplo basta para ilustrar a característica do Direito francês de evitar o emprego de conceitos extremamente abstratos. Não se encontram, por exemplo, noções como "declaração de vontade" ou "ato jurídico unilateral". Procurando não levar ao extremo a análise  jurídica, o legislador vai preferir utilizar noções mais flexíveis e capazes de se adaptar às novas exigências. É essa peculiaridade que explica que o Código Civil de Napoleão, já velho de mais de 200 anos, ainda possa trazer uma resposta satisfatória aos problemas contemporâneos. Muito embora as regras em matéria de família e sucessões tenham passado por grandes transformações, os artigos relativos aos contratos permanecem praticamente idênticos. Em uma época de inflação legislativa, essa técnica de produção normativa poderia ser muito enriquecedora para o legislador brasileiro e para os cidadãos de modo geral.

    Do ponto de vista do conteúdo das regras jurídicas, muito poderia ser dito. Longe de pretender demonstrar a influência da França na formação de cada uma áreas do direito pátrio, limitar-nos-emos a invocar duas áreas em que a experiência desse país parece ser rica de ensinamentos.

A primeira delas diz respeito ao fortalecimento do controle concentrado de constitucionalidade. Esse fortalecimento é o resultado, de um lado, da atribuição de efeito vinculante às decisões e súmulas do STF e, de outro, da redução dos poderes dos demais juízes em matéria de controle de constitucionalidade e das dificuldades de acesso ao STF pela via do recurso extraordinário. O reforço do contencioso objetivo e concentrado tem o condão de aproximar o Brasil da França, país de contencioso objetivo por excelência. Mais do que a proteção de situações jurídicas individuais, o Direito brasileiro caminha no sentido de assegurar maior proteção à Constituição enquanto norma jurídica abstrata. Esse tem sido o objetivo do controle de constitucionalidade na França e hoje assistimos ao desenvolvimento de mecanismos originais extremamente interessantes, como o controle da insuficiência da ação do legislador (conhecida como "incompétence négative") ou o papel das garantias institucionais e administrativas para assegurar a plena efetividade das normas constitucionais.

    A segunda área é a relativa às chamadas "discriminações positivas". O Direito francês constrói-se em torno de uma concepção rigorosa e consistente do princípio da igualdade, o que explica que a violação deste princípio esteja à frente de 13% dos casos de declaração de inconstitucionalidade das leis. Do ponto de vista de seu conteúdo, a aplicação deste princípio induz a proibição de todo tipo de discriminação (positiva ou negativa) fundada na raça, na origem, no credo ou no sexo. Essa concepção estrita e firme da igualdade não impede a França de possuir regras específicas para certas camadas da população. Adotam-se soluções que se revelam bastante singulares, se comparadas com as existentes em outros países, mas que não deixam de ser eficazes. A letra da Constituição brasileira inspira-se textualmente da fórmula francesa segundo a qual todos são iguais perante a lei, mas a leitura realizada por alguns segmentos da sociedade brasileira preconiza ampla aplicação das discriminações positivas, sobretudo as fundadas na raça ou no sexo. O estudo da experiência francesa revela que outras soluções poderiam ser adotadas, as quais se mostram eficazes e menos traumáticas do ponto de vista do principio da igualdade.

    Por essas e muitas outras razões, cumpre saudar a iniciativa daqueles que procuram reforçar o diálogo entre o Brasil e a França. Neste que é o "Ano da França no Brasil", muitos são os projetos na área do direito devidamente chancelados que caminham nessa direção. Dentre os já concretizados, merecem especial destaque o Congresso "Direito francês e brasileiro: perspectivas nacionais e comparadas" realizado em Porto Alegre entre os dias 25 a 29 de maio de 2009 e a publicação do livro "Introdução ao direito francês", escrito por pesquisadores de ambos os países e que apresenta uma visão geral e atual de cada uma das grandes áreas do direito francês”.


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