“DIREITO COMPARADO
“Liberdade religiosa e a não discriminação indireta
Por Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União,
pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da
Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris,
França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
Na coluna da última
semana (clique aqui para
ler), analisou-se a decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH no
caso Eweida and Others v. the United Kingdom, de 15 de janeiro
de 2013 [ECHR 12(2013)], no qual se afirmou a prevalência do princípio da não
discriminação indireta no âmbito da liberdade religiosa.[1] É interessante retomar esse assunto, pois, no mesmo julgamento, a Corte
também apreciou duas outras situações, uma delas bastante idêntica à pretensão
da britânica Nadia Eweida, ligadas ao problema da religião e sua manifestação
nos ambientes laborais.
Como exposto na
coluna anterior, Nadia Eweida era empregada da British Airways e foi suspensa por se recusar a
seguir o código de condutas da companhia, que não permitia o uso de símbolos ou
adereços religiosos, além do uniforme. Ela ostentava um crucifixo, de modo
visível, o que foi considerado pela empresa como uma quebra das normas
internas.
A decisão da Corte
Europeia, que contrariou o entendimento dos tribunais trabalhistas britânicos,
favoreceu Nadia Eweida e foi além da mera proibição de discriminações diretas à
liberdade religiosa, por definir que o empregador haveria ponderado
inadequadamente o conflito entre seu direito potestativo de ordenação das
atividades de seus empregados e a liberdade de exteriorizar a religião,
especialmente por inexistir norma protetiva específica no Direito interno.
A CEDH também
examinou, no mesmo julgamento, um recurso de Shirley Chaplin, uma enfermeira
britânica de 56 anos, que trabalhava no Royal Devon
and Exeter Hospital. Após uma carreira de 30 anos no hospital, a Sra. Chaplin foi advertida
de que não poderia mais usar um crucifixo durante suas atividades
profissionais. Segundo o empregador, a restrição baseava-se em normas internas,
voltadas à proteção sanitária dos pacientes. A enfermeira contra-argumentou que
o cordão com a cruz era uma forma de exteriorizar sua fé cristã. Ademais, a
proibição tornava aparente a ideia de que ela usava a cruz com o desiderato de
pôr em risco a vida dos pacientes, o que, na verdade, era uma simples forma de
expressão de sua liberdade religiosa.
O hospital, que é
uma instituição de caráter público, também sustentou a tese de que seguira
estritamente as normas do Ministério da Saúde britânico, segundo as quais, para
se minorar os riscos de infecção hospitalar, o uso de joias por profissionais
da saúde, durante suas atividades, deve ser reduzido ao mínimo. Há proibição
específica para cordões, colares e piercings faciais. Os
eventuais interessados em usar roupas ou joias por razões de natureza religiosa
ou cultural, nos termos do que imposto pelo Ministério da Saúde, deveriam levar
a questão a seu superior, o qual poderia negar esse pedido, desde que fundado
em motivos razoáveis.
A questão foi
judicializada e os tribunais trabalhistas britânicos rejeitaram a pretensão da
enfermeira Chaplin. Na instrução, provou-se que, por motivos de segurança e de
saúde, outra enfermeira cristã e dois enfermeiros Sikhs foram proibidos de usar joias indicativas de suas
religiões. Com a mudança dos uniformes em 2007, os quais passaram a ter uma
gola em V, a chefe de Shirley Chaplin pediu-lhe que retirasse o crucifixo e daí
nasceu a controvérsia.
Levada a questão à
CEDH, o julgamento foi contrário ao recurso de Shirley Chaplin. É conveniente
realçar que a Corte se valeu de uma técnica muito próxima da que o Tribunal
Constitucional Federal da Alemanha emprega em casos polêmicos: escolhem-se dois
recursos com elementos descritivos muito similares (como se dá com a pretensão
de Nadia Eweida e de Shirley Chaplin), mas com algum detalhe que os diferencia,
e, com base nessa diferença, chega-se a dois tipos diferentes de conclusões, o
que permite dilatar os fundamentos do acórdão para múltiplas hipóteses de fato.
Essa técnica é bem perceptível no acórdão da CEDH, pois são constantemente
comparados os recursos de Eweida e Chaplin.
Pode-se assim
apresentar uma resenha da fundamentação do acórdão quanto ao recurso de Shirley
Chaplin:
1. As regras quanto
ao uniforme dos profissionais de saúde foram estabelecidas pelo governo e se
pautaram por critérios objetivamente aferíveis e razoáveis (segurança sanitária
e dos pacientes), além de estabelecerem alguma margem de discricionariedade
para as chefias imediatas, o que, a depender de argumentos e circunstâncias
aceitáveis, poderia abrandar o nível de restrição ao uso de objetos e adereços
pessoais. Ficou devidamente provado, nos julgamentos ocorridos na Justiça
trabalhista, que havia efetivo risco para os pacientes e para a enfermeira, se
ela fosse admitida a trabalhar com o crucifixo (v.g., algum paciente puxar o
objeto; o crucifixo entrar em contato com alguma ferida).
2. Não houve
atitude discriminatória em relação à enfermeira Chaplin, pois, diferentemente
do caso de Nadia Eweida, que comprovou o tratamento diferenciado (e mais
favorável) em relação a colegas de outras religiões, o hospital proibiu outros
empregados (cristãos e não cristãos) de usarem joias de caráter religioso.
Ademais, como forma de se evidenciar a ausência de caráter restritivo à expressão
pública da fé, o hospital abriu a possibilidade de que a enfermeira usasse um
broche com uma cruz, o que foi por ela recusado.
3. A restrição,
diferentemente da aplicada à aeroviária Nadia Eweida, foi oriunda de um agente
público (os dirigentes dos Royal Devon and Exeter
Hospital), o que torna sua incidência coerente com uma ação estatal.
A CEDH, portanto,
rejeitou as teses de discriminação religiosa direta ou indireta, afastando-se,
de maneira sensível, das conclusões apresentadas no capítulo do acórdão relativo
à empregada daBritish Airways.
A fundamentação do
acórdão, no que se refere aos capítulos de Nadia Eweida e de Shirley Chaplin, é
bastante limitada. Em relação à primeira recorrente, a CEDH admitiu existir
discriminação indireta porque não houve ponderação adequada entre a liberdade
de expressão e o controle normativo (e potestativo) dos empregados. Quanto à
enfermeira do hospital público, a ponderação ocorreu e foi pautada pela
razoável colocação em preeminência da proteção sanitária. A complexidade da
questão exigiria, por certo, uma fundamentação mais sofisticada.
Como já se criticou
nesta coluna, em não poucas vezes, a CEDH não se constitui em uma fonte
primorosa de precedentes. Em muitos julgamentos, parece que o senso-comum ou
uma tentativa de se forjar um “consenso sobreposto europeu” substituem os
critérios de decisão baseados em técnicas analíticas (de matriz kelseniana ou
hartiana) ou argumentativas (radicadas nos estudos de Robert Alexy, para não
citar outros autores). A ponderação, no caso Eweida and
Others v. the United Kingdom, mais pareceu um recurso retórico do
que um meio eficaz de persuasão racional e de legitimidade dos resultados do
acórdão. Dito de outro modo, se comparados os capítulos Eweida (discriminação
indireta) e Chaplin (ausência de discriminação direta ou indireta), ter-se-á um
desenho mais consequencialista do que propriamente um perfil argumentativo.
Essa crítica foi
também formulada quanto à fundamentação do acórdão Leyla Sahin v. Turkey, de 10 de novembro de 2005. Nesse
julgado, a CEDH manteve decisão do Tribunal Constitucional da Turquia, que
considerou a proibição do uso do véu islâmico nas universidades locais, então
em vigor naquele país, era compatível com o direito fundamental à liberdade
religiosa. Conforme aponta Raphael Peixoto de Paula Marques, em erudito estudo
sobre o caso, a CEDH “concluiu que as autoridades turcas estariam melhor
habilitadas para realizar esse balanceamento de direitos fundamentais, já que
‘não é possível discernir através da Europa uma concepção uniforme do
significado da religião na sociedade’”.[2]
Sopesar, balancear
ou ponderar, a despeito da diferença entre essas operações, até por sua
concepção teórica diversificada, ora tributárias a Robert Alexy, ora
encontráveis em Ronald Dworkin, em muitos casos são meros simulacros de um
decisionismo consequencialista ou, o pior, populista, como tem apontado com
elegância Néviton Guedes, em suas colunas neste espaço.
No Brasil, ainda
estão por se resolver grandes questões sobre a existência de um núcleo
essencial do direito fundamental à liberdade religiosa. A situação dos
adventistas do sétimo dia (e dos judeus) e a alteração de data de concursos
públicos marcados para sábados foi destacada pelo Supremo Tribunal Federal
(STF) para exame em repercussão geral, nos autos do RE 611.874, de relatoria do
ministro Dias Toffoli. Trata-se de matéria de grande relevância, tanto para os
adeptos desses credos, quanto para a delimitação desse direito fundamental.
É de se recordar
que o Plenário do STF, no julgamento do STA 389 AgR, relator ministro Gilmar
Mendes, em juízo delibatório, deu preeminência ao princípio da isonomia em face
da liberdade religiosa de estudantes de fé mosaica, que pretendiam alterar a
data do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), a fim de que se preservasse o
descanso do Shabat.[3] É óbvio que o tipo de procedimento (suspensão de tutela antecipada) e a
forma (declaradamente) perfunctória da apreciação da controvérsia não permitem
dilatar as conclusões desse julgado e dele extrair o pensamento da Corte sobre
o tema. Ademais, examinando-se o objeto da demanda, fica nítido que não se
discutiu a tese da não discriminação indireta, tão relevante para a solução de Eweida and Others v. the United Kingdom.
O primado da não
discriminação indireta deve ser também considerado nas controvérsias sobre os
limites da liberdade religiosa. O caso Eweida and
Others v. the United Kingdom é uma importante contribuição para
esse debate, especialmente por fornecer duas diferentes soluções, com elementos
descritos muito aproximados. Só se espera que o STF não caia na armadilha da
utilização da técnica de ponderação para esconder uma decisão consequencialista
ou principialista, sem compromissos mais sérios com o exame crítico da
coerência de suas conclusões”.
[1] Disponível em http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-115881.
Acesso em 15-1-2013.
[2] MARQUES, Raphael Peixoto de Paula.
Quem tem direito ao uso do véu? Secularismo e liberdade religiosa em Sahin V.
Turquia. Revista General de Derecho
Constitucional. v. 15, p. 1-20, 2012.
Disponível em http://www.iustel.com/v2/revistas/detalle_revista.asp?id_noticia=412522.
Acesso em 20.1.2013.
[3] STA 389 AgR, Relator(a): Min.
Gilmar Mendes (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2009, DJe-086
14-05-2010. RT v. 99, n. 900, 2010, p. 125-135. Essa argumentação também foi
utilizada pelo STJ, em acórdão mais antigo: “O concurso público subordina-se aos
princípios da legalidade, da vinculação ao instrumento convocatório e da
isonomia, de modo que todo e qualquer tratamento diferenciado entre os
candidatos tem que ter expressa autorização em lei ou no edital. O
indeferimento do pedido de realização das provas discursivas, fora da data e
horário previamente designados, não contraria o disposto nos incisos VI e VIII,
do art. 5º, da CR/88, pois a Administração não pode criar, depois de publicado
o edital, critérios de avaliação discriminada, seja de favoritismo ou de
perseguição, entre os candidatos” (STJ.RMS 16.107/PA, Rel. Ministro Paulo
Medina, Sexta Turma, julgado em 31/05/2005, DJ 01/08/2005, p. 555)
Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União,
pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da
Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris,
França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha)”.
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