“Breves
considerações sobre Direito Penal do inimigo
Gisele Pereira Jorge Leite
Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre
em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de
Pesquisas Jurídicas.
Será
mesmo possível existir um Direito Penal e um Direito Constitucional divorciados
e calcados em novos paradigmas e baseados em novos pressupostos de fato?
Essa
inquietação, o modesto artigo tenta responder, especulando e explanando sobre o
direito penal do inimigo e ainda seus principais efeitos no ordenamento
jurídico brasileiro.
A
versão contemporânea da doutrina penal prestigia o direito penal do inimigo
idealizado por Günther Jakobs[1] que
abertamente defendeu a necessidade imperativa de existir o Direito Penal
direcionado aos cidadãos e outro Direito Penal que afirma ser voltado ao
inimigo.
O
normativismo funcional de Jakobs formulou a teoria da imputação objetiva que
passou a desenvolver uma tese do crime orientada para os fins do direito penal.
Enquanto
que a maioria dos doutrinadores coloca a dignidade da pessoa humana como centro
do sistema, Luhmann e Jakobs fazem justamente o oposto, e posicionam no
centro do sistema, a sociedade.
Para
Jakobs pessoa é conceito eminentemente jurídico, sujeito de direitos e
obrigações em obediência ao contrato social. A sociedade enquanto sistema de
comunicação funciona por meio de nexos de expectativas, sendo que a norma nada
mais são que expectativas de comportamento estabilizadas.
Quando
o indivíduo não realiza seu papel social, há uma quebra de expectativa e o
infrator ao delinqüir desestabiliza o sistema, configurando-se a violação da
norma, o que implica necessariamente na futura aplicação da pena.
O
ponto crucial da tese da imputação objetiva refere-se exatamente a estes papéis
que se relaciona com a função do indivíduo desempenha em específico contrato
social.
Na
teoria de Jakobs a ação uma vez ocorrida, transmuta-se em fato. Repudia então o
doutrinador alemão a tese welzeniana[2] de
índole finalista e reafirma que a função do direito penal não é a proteção ao
bem jurídico. Irá proteger as normas e a culpabilidade é entendida como ruptura
do sujeito como direito.
Günther
Jakobs foi reconhecido como um dos mais brilhantes discípulos de Wezel e criou
o radical funcionalismo sistêmico que aponto o Direito Penal dotado da função
primordial de proteger a norma e, apenas indiretamente tutela os bens jurídicos
mais fundamentais.
Além
da notável inflexibilidade punitiva da tese de Jakobs também propõe a
relativização dos direitos fundamentais o que demonstra ser incompatível com o
Estado Democrático de Direito e, mesmo assim vem se alastrando no ordenamento
jurídico pátrio.
Aliás,
deve-se à essa adesão a falta de eficiência das políticas criminais e ainda a
falta de seriedade em se atender aos anseios sociais de pacificação eficaz e
inclusiva.
Em
meados da década de oitenta e, em função da crescente criminalidade[3],
o doutrinador alemão Günther Jakobs elaborou a tese de direito penal do inimigo
que visa melhor atender à sociedade e garantir a segurança através da atuação
estatal mais contundente em combater o transgressor que insiste em ignorar e
violar as normas penais.
É
verdade que o direito penal do inimigo pugna de severa aplicação das normas
punitivas com a conseqüente eliminação dos direitos e garantias fundamentais e
até mesmo as processuais, consagrando uma atuação estatal não exatamente contra
o mero transgressor, porém, insurgindo-se contra um inimigo posto que ao
consiga manter-se fiel às normas.
Os
inimigos são criminosos econômicos, terroristas, genocidas, delinqüentes
organizados, criminosos sexuais e toda sorte de infrações perigosas e de alto
teor ofensivo.
O
inimigo é quem insiste permanentemente em se afastar do direito, e não oferece
garantias cognitivas de que vai ser fiel às normas. Exemplifica Jakobs o
fatídico dia 11 de setembro de 2001 como um típico ato de inimigo.
Elege-se
que o inimigo como aqueles sujeitos subordinados à legislação de exceção
definindo-se um evidente direito penal do autor, inerentemente do grau de
culpabilidade, reprovabilidade ou o bem jurídico afetado, seria então o agente
pelo que é, desconsiderando-se o fato delitivo cometido.
Os
adeptos aos minimalistas do direito penal gestaram um legislador que na ânsia
de oferecer célere resposta e de forma mais efetiva em face do pânico
generalizado e a onde de crescente criminalidade projetou leis esparsas que
impõem cerceamento de garantias e punições exacerbadas aos autores, em
desatenção a real culpabilidade dos transgressores, mais atinente somente às
suas características pessoais como forma de promover a segura repressão.
No
Brasil, o direito penal do inimigo tem ganhado francas adesões e guaridas até
mesmo dentro do poder judiciário brasileiro.
E,
apesar de não significar a solução para criminalidade contemporânea traz a
baila um ascendente punitivismo que vem sendo praticado nas mais diversas
esferas do governo, colocando sob séria suspeita a legitimidade do Estado
Democrático de Direito.
Para
Jakobs a primordial função do direito penal seria a proteção da norma, e,
portanto, da sociedade, e só indiretamente a proteção de bens jurídicos.
Explica
o doutrinador alemão que não é possível obter a pacificação social através do
direito penal tradicional, sendo indispensável o direito penal de exceção que
se obstina em restabelecer e proteger a norma jurídica.
Ainda
continua explanando que não denomina o criminoso como pessoa, posto que os
transgressores justifiquem sofrer maior rigor na punição e execução da pena
como forma de mantê-los fora da sociedade sem ter vistas à ressocialização ou
reinserção social.
Há
três pilares que sustentam o chamado direito penal do inimigo, a saber:
a)
a necessidade de antecipação da punição do inimigo e, não importa o cometimento
fático de qualquer crime, sendo puníveis inclusive os atos preparatórios mesmo
que não signifiquem crimes autônomos, em modelo oposto ao que vige atualmente
no Brasil;
b)
desproporcionalidade das penas e relativização e/ou supressão de certas
garantias processuais. Para Jakobs, as penas são eficazes quando puderem
extirpar da sociedade o indivíduo perigoso, ou seja, o inimigo;
c)
a criação de leis mais severas direcionadas diretamente aos inimigos. Portanto,
ter-se-ia dois direitos penais materiais e diametralmente opostos, um referente
ao cidadão comum (burgerstarecht) onde prevaleciam todos os direitos
processuais e a integralidade do princípio do devido processo legal e um
direito penal aplicável ao inimigo (feindstrafrecht) com pesadas penas
dirigidas aos que atentam contra o Estado indo desde a coação física até o
estado de guerra, objetivando o restabelecimento da norma, apartando o inimigo
do seio da sociedade, bem como servindo de intimação para outras pessoas;
Busca
punir não apenas os fatos pretéritos mas igualmente os fatos futuros, daí dizer
que é um direito penal prospectivo. Em oposição a um direito penal preventivo.
Portanto,
segundo a tese Jakobs não há distinção entre o conceito de cidadão e pessoa, de
forma que igualmente não separa os direitos inatos da pessoa humana, dos
direitos do cidadão.
Todavia,
é forçoso reconhecer que ser humano não se refere a uma qualidade que possa ser
retirada do agente, sendo pois inata característica bem como os direitos à esta
inerente.
Acredito
que a base filosófica de Jakobs está nas obras de Rousseau e Fichte
principalmente quando define como inimigo aquele que rompe com o contrato
social e o criminoso por não se adaptar à sociedade podem ter sua qualidade e
direitos de cidadão suprimidos.
No
direito penal do inimigo o ordenamento jurídico está preocupado com a completa
eliminação daqueles eleitos como inimigos, em oposição ao cidadão comum,
esquadrinhando uma autêntica guerra onde os direitos e garantias são
relativizados, flexibilizadas e até mesmo por vezes suprimidos.
Preocupa-se
com a aplicação da punição do autor que é o inimigo e não apenas do fato
infrator da norma. Há doutrinadores que acreditam tratar-se de um novo
movimento lombrosiano embora apontados por Lombroso buscando a punição
antecipada e preventiva o que é justificável por ser perpetrado por não pessoas
(feind sund aktuell unpersonem).
O
direito penal do inimigo é igualmente criticado por Claus Roxin (que defende um
funcionalismo moderado) e ainda pecha a tese de Jakobs de “direito penal
simbólico”.
Veemente,
Roxin[4] aponta
que a tese tende a beneficiar certos grupos políticos ou ideológicos e a
apaziguar o cidadão, fazendo-o crer que as medias positivas estão sendo
efetivadas, quando em verdade trata-se de uma saída nefanda e seletiva para o
direito penal implicando na invasão no cumprimento de tarefas político-sociais.
É
deveras questionável a referida função simbólica do direito penal do inimigo e
tende a prevalecer sobre a função instrumental e não significando efetiva
proteção dos bens jurídicos.
De
fato, cria-se então a ilusão de segurança e uma falsa confiança na lei e nas
instituições, e incorrendo no maniqueísmo do estado de polícia.
Analisar
o direito penal em tempo de crise nos leva fatalmente ao busilis que
existe em não se poder no Estado Democrático de Direito enfrentar o inimigo de
forma adequada, daí a necessidade de direito penal diferenciado composto de
tipos abertos e imprecisos e, prevendo a antecedência da tutela punitiva
principalmente em razão da importância do bem jurídico tutelado, provendo
severas penas com desrespeito ao princípio da legalidade e ao respeito à
dignidade humana, além do devido processo legal.
A
professora Alice Bianchini em sua obra “Direito Penal na era da globalização”
aponta que o conceito de delito ao lado do poder punitivo estatal representam
duas formas de violência. Também referente ao mesmo fenômeno elaborei um artigo
intitulado “Sociedade injusta - A violência é consequência da exclusão social”,
disponível em http://jusvi.com/artigos/1466
E
o Direito Penal deve ser instrumento para mitigar essas duas violências, tanto
coibindo o abuso cometido por particulares como evitando arbitrariedades do
poder estatal.
Nas
sábias palavras do professor Dr. Luiz Flávio Gomes ao penalista do terceiro
milênio cabe desfazer os equívocos e deformidades do passado, situando o
direito penal de maneira adequada e não o fazendo retroagir às desrespeitosas
fórmulas que tanto ferem a dignidade humana.
Apesar
de reconhecer o Direito Penal como controle social, não se pode diminuir o
respeito à pessoa humana para se atingir o bem comum, pois esse tem seu núcleo
basilar na própria dignidade humana (que é impenhorável, indivisível,
irrenunciável e indisponível).
O
maior perigo ao Estado Democrático de Direito é o fracasso da paz social e a
falência do bem-estar comum, posto que os valores como a ordem, paz e justiça
são os que traduzem em suma, o respeito à individualidade do cidadão.
O
legítimo escopo do Direito Penal para garantir a segurança do bem comum só pode
ser atingido dentro do sistema de legalidade, pois o exercício da função
pública tem limites que derivam dos direitos humanos que são atributos
inerentes à dignidade humana e, ipso facto, superiores ao poder do
Estado.
Portanto,
é crucial para plena eficácia do princípio da dignidade humana que haja total
acolhida pela ordem jurídica e política do Estado.
A
tese do direito penal do inimigo revela-se relevante na estrutura do sistema
político totalitário e que exerce o mesmo papel que tece o direito nazista
principalmente com sua prática anti-semita.
Convém
observar ainda que a tese de Jakobs transforma as normas penais em instrumentos
de banalização de seres humanos que passam ser considerados como inimigos
despojados de toda humanidade.
E,
nesse particular, conveniente citar a lição de Hannah Arendt que retrata
Eichmann que é um homem de rasa inteligência, dotado de personalidade incapaz
de pensar e pré-disposto à cega obediência mediante qualquer voz imperativa.
A
obra de Arendt aponta que sobre o mal infinito que pode ser praticado por
aqueles incapazes de julgar e que não possuem um objetivo definido e
realizável, e, ainda, que recusa-se a qualquer prerrogativa de julgar e de
racionalidade.
O
mal explica Hannah Arendt significa a dimensão demoníaca, é superficial e
vazio, e desafia o pensamento que tenta tocar as raízes. Sintetiza que o
pensamento que se ocupa do mal é aquele que nada encontra.
Portanto,
o abandono, a necessidade e o afastamento da realidade reforçam a banalidade do
mal, pois além da ausência do pensamento dos indivíduos este facilite em muito
a efetivação do totalitarismo.
As
bases filosóficas utilizadas por Jakobs para justificar sua teoria são
clássicas nas Ciências Humanas, principalmente ao mencionar que quando o
inimigo infringiu o contrato social, deixou de ser membro do Estado, abdicou de
sua cidadania (nesse argumento, utiliza claramente Rousseau).
Mais
adiante, aponta que para quem abandona o contrato de cidadão, perde ipso
facto todos seus direitos (quando utiliza a doutrina de Fichte).
Já
quem comete alta traição contra o Estado, o criminoso não deve ser castigado
como mero súdito, e sim, como inimigo (nessa visão, inspira-se em Hobbes). E,
por fim, quando aponta que quem ameaça constantemente a sociedade e o Estado,
para quem recusa aceitar o “estado comunitário legal”, merece ser tratado como
inimigo (quando se inspirou em Kant[5]).
Concluímos,
portanto que a teoria do direito penal do inimigo apresenta-se com considerável
lastro filosófico embora sua aplicação redunde em flagrante retrocesso para
humanidade e para evolução do direito penal.
A
lógica cartesiana que sintetiza que quem infringe o contrato social é mais que
mero delinqüente, é o inimigo não fazendo jus ao status de cidadão. Representa
o mal e exprime aberrante e freqüente inadequação à norma imposta, simboliza
finalmente um perigo de alto risco o que por si só, justifica e legitima
plenamente a antecipação da punição.
Os
defensores da tese jakobiana alegam que a aplicação do direito penal do inimigo
causa menor dano à sociedade e a pessoa humana em comparação com a aplicação do
direito penal clássico.
Assim
a pena de prisão revela seu duplo significado: um simbólico e outro físico: o
fato criminoso de um ser racional significa a desautorização da norma,
revelando frontal ataque à sua vigência, então a pena acena simbolicamente que
o delito não tem o efeito de destruir o ordenamento jurídico, portanto, a norma
segue vigente e válida, para a configuração da sociedade, mesmo depois de
violada.
Defende
ainda Jakobs que a pena não se dirige ao criminoso, e, sim apenas ao cidadão
que atua com fidelidade ao Direito, tendo função preventiva de integração e de
reafirmação da ordem e da norma.
Curial
notar que a função da pena no Direito Penal do cidadão é contrafática
(contrariedade à sua violação) enquanto que no Direito Penal do inimigo a pena
visa predominantemente à eliminação do perigo e que tal supressão ocorra pelo
maior tempo possível, desta forma, a pena impede que o sujeito pratique crimes
fora do cárcere, portanto enquanto continuar preso ocorre a prevenção do
delito.
O
Direito Penal do inimigo necessita da caracterização do inimigo e da oposição
que se faz ao direito penal do cidadão (onde estão vigentes todos os princípios
limitadores do poder punitivo estatal).
Em
síntese, podemos identificar suas principais bandeiras que são:
a)
flexibilização dos princípios da legalidade e da tipicidade (prescrição de vaga
descrição dos crimes e das penas);
b)
inobservância de princípios basilares tais como o da ofensividade, da
exteriorização do fato, da imputação objetiva, aumento desproporcional das
penas, criação artificial de delitos (crimes sem bens jurídicos
definidos), endurecimento da execução penal; exagerada antecipação da tutela
penal; supressão de direitos e garantias processuais fundamentais; concessão de
prêmios ao inimigo que se mostra fiel ao Direito( como a delação premiada,
colaboração premiada); flexibilização da prisão em flagrante (ação controlada);
infiltração de agentes policiais; uso freqüente de medidas preventivas ou
cautelares (tais como interceptação telefônica sem justa causa, quebra de
sigilos não fundamentados ou contra a lei e medidas penais dirigidas contra
quem exerce atividades lícitas tais como bancos, advogados, psicólogos,
leiloeiros, joalheiros, casas de câmbio e, etc.
As
críticas feitas à tese jakobiana conforme bem elucidou Cancio Meliá é que este
se reduz a ser mais um exemplo de Direito Penal do autor onde se pune o agente
pelo que é, em oposição flagrante ao Direito Penal do fato que pune o agente
pelo que ele fez.
Transforma
a maioria das penas em medias de segurança tendo uma durabilidade estendida e
imprecisa. Só a guisa de registro histórico, o auge do Direito Penal do autor
deu-se exatamente durante o nazismo, o que levou a demonialização de alguns
tipos de delinqüentes.
O
autêntico Direito Penal deve forçosamente estar vinculado a Constituição
Democrática e, frise-se como já aduziu Dr. Luiz Flávio Gomes enquanto que a
expressão “Direito Penal do cidadão” significa tosco pleonasmo o Direito Penal
do inimigo revela-se como paradoxo sendo um não-direito ou um anti-direito.
Observe
que no direito penal de Jakobs não se reprovaria a culpabilidade do agente, e
sim sua periculosidade e, com isso, a pena e a medida de segurança deixariam de
ser realidades distintas e passariam a ter caráter permanente e curativo.
Reforçando
o positivismo criminológico de Lombroso, Ferri e Garófalo que propunham até o
bizarro fim das penas através da massiva imposição de medidas de segurança.
Não
se repele a desproporcionalidade das penas, ao revés, procura-se enfaticamente
se punir a periculosidade deixando de ter relação com os danos causados de cada
caso concreto.
Instaura-se
o procedimento de guerra e de exceção que não se coaduna com o Estado de
Direito. Em verdade se constitui um direito de terceira velocidade caracteriza
pela pena de prisão sem as garantias penais e processuais e sem respeito ao
devido processo legal.
A
expansão do direito penal do inimigo solidifica o âmbito punitivo revelando-se
ser um Direito Penal do legislador contendo exagerada antecipação da tutela
penal, com bens jurídicos predeterminados e severa execução penal.
Resulta
em ser a soma da direita e da esquerda punitivas sendo inconstitucional no
contexto brasileiro principalmente por conceber medidas excepcionais típicas de
tempos anormais tais como estado de defesa e o estado de sítio.
Cumpre
salientar que apesar de atingir bens jurídicos relevantes a chamada criminalidade
contemporânea inimiga não põe o risco o Estado vigente e nem mesmo suas
principais instituições.
Ademais,
tratar criminosos comuns como fosse “criminosos de guerra” adiciona argumento
apenas para o questionamento da legitimidade do sistema penal além de afirmar o
crime como ato de contestação ao sistema.
A
dinâmica e a lógica de guerra sempre gera intolerância exagerada e inaugura um
tendencioso “vale-tudo” que conduz aos excessos e a falta de razoabilidade que
põe em risco o Estado Democrático.
Contra
o Direito Penal do inimigo reagiu Eugenio Raúl Zaffaroni apontando os seguintes
pontos:
a)
para exercer o poder dominante há de se ter estrutura e ser detentor do poder
punitivo;
b)
quando este poder não encontra limites transforma-se em estado de polícia que
se opõe ao estado de direito;
c)
o sistema penal para ser exercido permanentemente sempre está à procura do
inimigo; o poder político se constitui como poder de defesa contra os inimigos;
d)
ao mencionar que o Estado é vítima dos infratores eleitos como inimigos com
isso neutralizou-se a verdadeira vítima do direito;
Lembremos
que os primeiros inimigos do Estado foram os hereges, feiticeiros, curandeiros,
subversivos, cientistas e todos aqueles que desafiavam dogmas e aduziam novos
conhecimentos e filosofias.
Em
nome de Cristo se entabulou a Santa Inquisição onde se queimavam e torturavam
os inimigos da fé cristã; a referida tese de Jakobs reinventa uma cruzada ou
uma guerra santa contra esse inimigo do Estado e da ordem.
Com
a chegada da burguesia ao poder e com apoio das ciências naturais e médica
(Lombroso) e, recentemente com as neurociências, genética comportamental e a
psiquiatria forense o criminoso é considerado como ser inferior, selvagem e
pouco evoluído o que justifica para a manutenção da lei e da ordem a aplicação
de rígidas medidas punitivas para restabelecer o valor e eficácia da norma penal.
Com
a Revolução Industrial incrementa-se a divisão de classes sociais, com isso a
riqueza e a miséria vivem lado a lado e para controlar os pobres e os
miseráveis e seus delitos, o inimigo deve ser marginalizado.
Observamos
que na trajetória histórica evolutiva do Direito Penal na Idade Média o
processo era secreto e o suplício ou apena (ou punição) era pública (para
servir de exemplo e para amedrontar os possíveis futuros infratores).
A
partir da Revolução Francesa e depois com o Estado Moderno o processo torna-se
público, porém o castigo (pena ou sanção) era secreto.
No
início do século XX a origem do inimigo era a degeneração racial e aparecem
movimentos ideológicos preocupados com a eugenia, a seleção étnica com viés
nitidamente autoritário tais como o nazismo[6],
fascismo e bolchevismo.
Já
no fim do século XX com a hegemonia mundial consolidada nas mãos dos EUA e,
particularmente após a Queda do Muro de Berlim (09/11/1989) quando os inimigos
eleitos foram os comunistas e o comunismo e, com isso, restou evidenciado nas
variadas doutrinas a defesa da proteção da chamada “segurança nacional”.
Até
1980, os EUA contabilizaram estatísticas penais e penitenciárias iguais às de
outros países, e, com o governo de Ronald Reagan começou a indústria de
prisionização (e atualmente totalizam cerca de cinco milhões e trezentos mil
presos, e cerca de seis milhões estão trabalhando no sistema penitenciário
norte-americano) e pelo menos dezoito milhões de pessoas vivem à custa desse
sistema penitenciário e, desta forma, conseguiu-se a milagrosa redução do
desemprego.
O
tremendo aparato prisional é mantido e constituem as chamadas “máquinas de
fazer dinheiro” onde o crescente aprisionamento se reveste em lucrativo negócio
gerando mão-de-obra de baixo custo e expressivos lucros.
É
falacioso o Direito Penal do inimigo pois tem um discurso promocional,
apelativo e emocional onde ao projetar a dor da vítima principalmente através
da mídia, elege-se um inimigo e desponta a ciência criminal com a salomônica
solução de aniquilar o inimigo seja pela pena de morte, pena perpétua ou pelo
injustificado endurecimento da execução penal ( como por exemplo, a RDD ) seja
reduzindo as garantias constitucionais e processuais dos acusados.
Tal
Direito Penal tornou-se um produto de mercado com discurso meramente
publicitário onde a mídia domina o Estado e o juiz garantista tem que enfrentar
ferrenha opinião pública para aplicar o Direito.
Tal
prática penal tornou-se enfática nos EUA causando aprisionamento em massa bem
peculiar da política neoliberal que acena com a privatização dos presídios e
com a maior incidência do sistema penal sobre os excluídos.
Infelizmente
o Direito Penal da era da globalização sobretudo caracteriza-se pela crescente
prisionização e os velhos inimigos do Estado e do Estado de polícia ( os pobres
e marginalizados e excluídos) constituem habitualmente o exército reserva,
lembrando que os encarcerados de outrora não exerciam nenhuma função econômica
( posto que não eram consumidores, contribuintes, empregados e nem empregadores
e não sendo geradores de impostos).
Com
a privatização dos presídios tais encarcerados se inserem finalmente na
economia, há a geração de empregos, o que estabiliza o índice de desemprego.
Assim
os pobres, miseráveis e marginalizados passaram finalmente cumprir uma função
econômica pois seu aprisionamento gera dinheiro, empregos e, enfim poder
econômico. Eis aí, o esquema da “máquina de fazer dinheiro”[7].
O
sistema penal funciona assim de forma seletiva conforme a tese do labelling
approach e, assim é fácil alimentar os cárceres com o exército dos
excluídos que ao invés de sujarem as ruas e sarjetas da cidade, passam ser
úteis, adquirem função econômica em razão do aprisionamento, e ameniza-se a
feiúra explícita das paisagens urbanas.
Opera-se
a limpeza social e arquitetônica além de fortalecer a sensação de segurança. Os
movimentos de tolerância zero dirigem-se aos marginalizados e pobres e se
revela em ser sistema penal seletivo onde sua aplicação penal visa dar
cumprimento a alguma função econômica ao exército dos excluídos.
O
movimento Lei e Ordem (Law and Order) é política criminal que tem como
fim transformar conhecimentos empíricos sobre o crime em alternativas e
programas a partir dessa perspectiva. Ralf Dahrendorf é um de seus criadores.
Na
década de setenta nos EUA o movimento Law and Order ganhou
vasta amplitude e continua até o momento expressando a repressão máxima e
alargamento de leis penais.
Tal
doutrina sofreu em 1991 uma ramificação passando também a ser conhecida como
“tolerância zero” onde vige a banalização da “teoria da vidraça quebrada” que
divulga a necessidade da máxima punição mesmo diante de delitos leves.
No
Brasil é verificável a adesão à tese de Jakobs principalmente com a edição da
Lei de Crimes Hediondos[8](Lei
8.072/90) ratificando a atuação do Direito Penal simbólico e movido pela
comoção social.
Também
a RDD – Regime Disciplinar Diferenciado instituído pela Lei 10.792 que passou a
vigorar a partir de 2 de janeiro de 2003 e que alterou o art. 52 da Lei de
Execuções Penais.
Contemporaneamente
o direito penal Vicência um grande ecletismo metodológico expondo diversas
tendências que vão desde os positivistas até aos axiológicos e ontologistas.
O
funcionalismo sistêmico propõe reconstruir a teoria do crime com base em
critérios político-criminais e tem sua versão mais radical defendida por Jakobs
(que também criou a imputação objetiva que discute a função da pena).
Conclui-se
que esse falso novo pensamento jurídico penal de tom radical-finalista nos
mostra o Direito Penal que busca identidade normativa no grupo social.
Para
Günther Jakobs o crime é conduta defeituosa do autor que não observa a norma,
com isso violando seu papel social e aquilo que se espera dele.
Com
isso, a sociedade peremptoriamente se nega a admitir que tal crime decorra da
vida ou contexto social daí entender que a pena represente a realidade do
sistema jurídico capaz de com base na comunicação estabeleça o comportamento de
acordo com a identidade normativa.
De
qualquer forma o crescimento da criminalidade contemporânea merece solução que
deve ser buscada com amplo debate sem abrir mão da exigência do princípio da
dignidade humana.
Não
é possível ser complacente com postura antiliberal depois de tantas conquistas
advindas do iluminismo, não podemos nos contentar em retornar às trevas e às
práticas que contradizem e renegam o Estado de Direito.
A
finalidade do sistema de justiça criminal não se esgota nos seus objetivos
internos. A repressão há de ser o meio para atender os anseios sociais de
segurança, para atingir os fins almejados pela política criminal de
responsabilidade não só o Executivo, mas também o Legislativo e Judiciário que
precisam se engajar sem se esquecer jamais que é a dignidade humana que
precisamos preservar”.
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Notas
[1] Jakobs estudou Direito nas universidades de
Colônia, Kiel e Bonn, tendo se graduado nesta última em 1967. Galgando em 1971
o título de advogado em Bonn pelo trabalho sobre a negligência no delito de
resultado. Em 1972 veio a ter sua primeira cátedra na universidade de Kiel.
Realizou valorosa carreira acadêmica nas áreas de direito penal, direito
processual penal e filosofia do Direito. Foi inicialmente continuador da escola
finalista de Hans Wezel (de quem foi discípulo) vindo mais tarde a superá-la.
Atualmente é professor aposentado da universidade de Bonn. Com as idéias de
Niklas Luhmann sobre a teoria dos sistemas divorciou-se de vez da doutrina
finalista e criou o funcionalismo sistêmico baseado na racionalidade
comunicativa. Após ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 os EUA contra
as Torres gêmeas em Nova York obteve relevante papel ao lançar os fundamentos
legitimadores da guerra contra o terror.
[2] Hans Wezel (1904-1977) foi jurista e filósofo
do direito alemão e mostrou um sistema baseado na teoria finalista da ação e
estuda o crime como atividade humana e fora formulada em 1930. Para tal teoria,
a conduta é composta de ação ou omissão somada ao dolo perseguido pelo autor,
ou à culpa em que incorreu por não observar o dever objetivo de cuidado. É bom
recordar que antes da proposição finalista vigorava no Código Penal Brasileiro
a teoria clássica ou causalista até a reforma de 1984.
[3] A criminologia contemporânea desde a década
de trinta vem procurando a superar as teorias patológicas de criminalidade
apenas com bases em características biológicas, psicológicas e que diferenciam
criminosos e cidadãos e, acreditam na plena negação do livre-arbítrio mediante
rígido determinismo.
[4] Claus Roxin nasceu em Hamburgo em 15 de maio
de 1931,é um jurista alemão.Uum dos mais influentes dogmáticos do direito penal
alemão, tendo conquistado reputação nacional e internacional neste ramo. É
detentor de doutorados honorários conferidos por dezessete universidades no
mundo. Foi o introdutor do princípio da bagatela em 1964 e desenvolveu também o
princípio da alteridade ou transcendentalidade no Direito Penal (onde se proíbe
a incriminação de atitude meramente interna, subjetiva do agente, e que, por
tal razão, revela-se incapaz de lesionar o bem jurídico. Ninguém pode ser
punido por ter feito a si mesmo. Em 1971, tornou-se professor da Universidade
de Munique onde lecionou até 1999 ocupando a cadeira de direito penal e
processo penal. Trabalhou, também, em um workshop de juristas
alemães e suíços que publicou uma proposta alternativa do sistema penal alemão
em 1973 e uma proposta alternativa ao Código de Processo Penal alemão em
1980.
[5] O neokantismo é corrente filosófica iniciada
na Alemanha e a partir de 1860 surge como superação do positivismo e não
necessariamente como sua negação. Desde a última década do século XIX houve
forte reação contra a mentalidade puramente positivista, tendo como lema o
retorno à metafísica. Foram dois os principais movimentos filosóficos dessa
época: o historicismo e o neokantismo. E daí, advieram mais duas tendências: a
Escola de Marburgo( Cohern, Notarp e Stammler) e a Escola de Baden ou
subocidental alemã ( Winderlband, Rickert, Lask, Mayer, Radbruch e Sauer) e de
grande repercussão no campo jusfilosófico e penal.
[6] O nazismo exerceu seu poder e império desprovido
de leis justas e arquitetando um sistema penal paralelo. Onde a autonomia e
isenção dos juízes eram francamente admoestados pelo III Reich.
[7] O Direito Penal do Estado de polícia ou o
direito penal do inimigo e seus adeptos não devem ter gostado da decisão do
Presidente do STJ em HC 111 111 que lhe garantiu não só o direito de
comunicação reservada com seu advogado como também a possibilidade de não ser
submetido ao uso de algemas quando de sua chegada ao Brasil. Aliás, o uso das
algemas na seara jurídica brasileira continua polêmico, conforme prevê o art.
199 da Lei de Execuções Penais sinaliza in litteris: “O emprego de algemas será
disciplinado por decreto federal.” Todavia até hoje ainda não ocorreu a devida
regulamentação federal.
[8] Crime hediondo em sua definição são os que
merecem maior reprovação do Estado e são elencados pela lei 8.072/90 tais como:
homicídio, latrocínio, extorsão qualificada pela morte, estupro de vulnerável,
epidemia com resultado morte, falsificação, corrupção, adulteração de produto
destinado aos fins terapêuticos e medicinais e genocídio. E também o crime de
tráfico de entorpecentes, a tortura e terrorismo. Em 2006 o STF reconheceu a
lei como inconstitucional.
Informações
Sobre o Autor
Gisele Pereira Jorge Leite
Professora
universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada,
conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.
http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11543.
Acesso: 17/6/2013
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