(BREVES CONSIDERAÇÕES DO DIREITO DO TRABALHO NO URUGUAI)



“O Processo do Trabalho e suas Peculiaridades*
Oscar Ermida Uriarte
Catedrático de Direito do Trabalho na Universidad de la Republica (Uruguai)

Desejo agradecer o convite da AMATRA para proferir essa palestra, que implica uma grande honra para mim. É muita honra para o trabalhismo do Uruguai sediar um encontro brasileiro sobre Direito do Trabalho. Lembro uma brincadeira que me fizeram numa ocasião em São Paulo, há muitos anos, e um amigo me disse “espera aí Oscar, todos temos muito interesse em escutar e entender o que você fala, então, por favor, fale em espanhol”.
Estão todos então autorizados a pedir que eu fale em espanhol.
A palestra se refere principalmente à situação uruguaia, mas utilizaremos o direito brasileiro como comparativo. Vocês sabem que o direito comparado estuda semelhanças e diferenças entre ordenamentos jurídicos. E nas diferenças é que encontramos a relação entre o direito do trabalho uruguaio e o brasileiro. Podemos dizer que em direito processual do trabalho e na estrutura da Justiça do trabalho, Brasil e Uruguai ocupam extremos opostos. O Brasil tem uma Justiça do Trabalho com uma estrutura própria, com alto grau de autonomia. Uma Justiça Trabalhista paralela e afastada da Justiça Comum, com um Tribunal Superior do Trabalho próprio, enquanto o Uruguai só tem justiça especializada na capital, em Montevidéu. Não há justiça especializada no interior. O Uruguai não tem processo do trabalho, constituindo uma exceção em toda a América Latina.
As peculiaridades do processo do trabalho decorrem das particularidades do direito do trabalho, por que o direito processual é adjetivo, é instrumental. A sua função é o cumprimento, a eficácia, a realização, do direito substantivo. A função do direito processual do trabalho é a eficácia, a realização, do direito do trabalho.
O direito processual do trabalho é instrumental, mas de extrema importância, por que dele depende a verdadeira aplicação do direito substantivo. E por isso o direito substantivo do trabalho transmite seus princípios ao direito processual do trabalho.           A enumeração das peculiaridades ou princípios do direito processual do trabalho muda conforme o autor. Escolhemos seis peculiaridades ou princípios aceitos pela maioria da doutrina: proteção, realidade, gratuidade, celeridade, oralidade e autonomia. Com respeito a primeira particularidade, o da proteção, não poderia ser diferente.              O direito substantivo do trabalho tem como função principal a proteção. Mais ainda deve tê-la, o direito processual do trabalho. Tanto assim é possível discutir se a proteção é um princípio do direito processual do trabalho ou se é um princípio do direito do trabalho que é aplicado ao direito processual.
Em todo caso, não se discute esse caráter protetor do processo trabalhista. Alguns autores espanhóis falam da desigualdade compensatória, com a mesma idéia de proteção. Esse princípio de proteção tem múltiplas aplicações. Em matéria de prova, quanto à valoração da prova, ao ônus da prova, a simplicidade na produção da prova, a concentração e até aspectos relacionados com a gratuidade e a celeridade. Tanto assim, que se pode afirmar que todos os outros princípios ou peculiaridades do direito processual do trabalho derivam ou são manifestações do princípio da proteção. Poderíamos dizer que o único princípio é o protetor e todos os demais derivam dessa necessidade de proteção.
O segundo princípio ou peculiaridade é o da realidade ou veracidade, busca          da verdade material. Um querido juiz trabalhista uruguaio falava da verdade da vida. O processo trabalhista busca a realidade. Também aqui temos um reflexo do direito substantivo no direito processual do trabalho. Esse princípio tem também as suas múltiplas manifestações. Todas as exceções que no mundo do processo trabalhista podem se dar na representação, da não-exigência do comparecimento do Advogado em determinados casos, a assistência ou substituição sindical, são manifestações dessa busca da verdade real, de uma simplicidade que facilite a verdade das coisas. Sobretudo em matéria de legitimidade passiva, aceitação ampla da personalidade do empregador para além das formas jurídicas, a realidade da prova, o sistema de nulidades, são manifestações desse princípio.
A concentração, a oralidade, a imediação, podem também ser consideradas reflexos do princípio da realidade. Os mecanismos inquisitivos em matéria de prova, o poder do Juiz de procurar por si mesmo além do que pedem as partes, a prova necessária, o impulso de ofício, a possibilidade de julgamento ultra ou extra petita, são todos manifestações do princípio da busca da verdade.
O terceiro princípio é o da gratuidade para o trabalhador, clara derivação do princípio protetor, da desigualdade compensatória da qual falávamos. Em quarto lugar, a oralidade, que também se manifesta na concentração, na simplicidade, na imediação. Em quinto lugar, está o princípio da celeridade, de rapidez. A fundamentação teórica da celeridade no processo trabalhista, a sua importância, parte de uma realidade geral. A rapidez no processo é importante sempre. Essa afirmação clássica de que a Justiça lenta não é justiça, é verdade sempre. Mas é mais verdade no campo do direito processual do trabalho. A prova é que a celeridade é sempre aceita como princípio informador do direito processual do trabalho, embora nem sempre seja proclamada como princípio no direito processual civil.
A celeridade e a rapidez são essenciais em matéria trabalhista por três razões. Em primeiro lugar, pela natureza alimentar do salário. O salário e as demais prestações trabalhistas tem a ver com a sobrevivência do trabalhador e de sua família. O trabalhador que reclama em juízo encontra-se em estado de necessidade, razão pela qual a questão deve ser resolvida de modo rápido. A segunda razão é a de que a demora na resolução do processo destrói toda a estrutura do direito substantivo do trabalho. A proteção não existirá se não houver uma justiça que com rapidez aplique esse direito. Cai por terra a irrenunciabilidade, a imperatividade do direito do trabalho. A perspectiva de um processo de longa duração, leva o trabalhador a aceitar transações desastrosas. Pior do que isso, estimula o empregador a não cumprir as regras trabalhistas.                 A perspectiva de um processo demorado é um estímulo ao não-pagamento. O direito do trabalho depende de uma justiça rápida e célere. A maior desregulamentação, a mais efetiva e silenciosa derrogação do direito do trabalho é uma justiça lenta.                   A terceira razão de importância da celeridade é de que de um ponto de vista econômico, é de que não faz sentido por em movimento toda a máquina judicial – Juízes, Advogados, funcionários – para resolver se um senhor está devendo dois ou três salários mínimos ao outro. Economicamente seria mais eficiente entregar o dinheiro sem sequer perquirir quem tem razão, do que despender tanto tempo e gasto público para realizar o processo. Não existe razão alguma teórica ou técnica, para que um processo trabalhista demore mais do que poucos meses. Não falo de alguns processos muito complicados, mas da grande maioria, que são simples.
Há, de outro lado, muitas razões para que todas as questões trabalhistas sejam resolvidas rapidamente. Aqui, eu quero fazer um parênteses, para realizar uma crítica da situação uruguaia, por que a duração do processo trabalhista uruguaio é muito extensa. O processo trabalhista uruguaio dura no mínimo dois anos ou muito mais, especialmente se há recurso ou se há necessidade de liquidação de sentença ou se é necessário iniciar um processo de execução, para cobrar o crédito trabalhista. Além disso, o sistema nacional de juros e de sobre taxas judiciárias, transformando em grande negócio não pagar a condenação, fazer com que o processo demore. E esse deveria ser o pior dos negócios possível. O sistema de gratuidade no processo uruguaio é insuficiente. Há muito procedimento judicial que tem de ser pago, para que se realize a diligência, realizar perícia, etc, e o trabalhador geralmente não pode suportar o custo. Tudo isso gera uma desconfiança dos trabalhadores no sistema jurídico trabalhista. Não se trata de desconfiar dos juízes, mas do sistema em si, por causa da falta de celeridade. E isso leva a transações ou a greves ou ações que acabam sendo mais efetivas.
A proposta de solução para essa deficiência de celeridade do processo uruguaio é, em primeiro lugar, a criação de um processo sumaríssimo trabalhista, inspirado no sumaríssimo brasileiro, destinado a pequenas causas. Em segundo lugar, limitar as possibilidades de recurso, seja instaurando um processo de instância única, seja exigindo, para que a apelação seja recebida, o depósito do valor integral da condenação. Em terceiro lugar, temos de reformar o sistema de juros e taxas, de modo que não pagar seja o pior dos negócios possíveis. E temos de fazer com que a gratuidade seja efetiva, de modo que o trabalhador possa produzir todas as provas possíveis, sem gasto algum. Tudo isso supõe uma profunda reforma, a substituição total do sistema atual, por outro totalmente novo e verdadeiramente autônomo. E essa idéia nos leva ao último princípio de que queremos tratar hoje: o princípio ou peculiaridade da autonomia do processo do trabalho.
O fundamento teórico da autonomia do processo do trabalho busca a mesma consideração que a questão da proteção. É princípio ou derivação, decorrência, da grande autonomia do direito substantivo do direito do trabalho e do caráter adjetivo do direito processual, já que não se discute a autonomia do direito material do trabalho. O grande processualista uruguaio Eduardo Couture, deixou nessa matéria três grandes lições: a primeira, é precisamente a de que o direito do trabalho precisa de um processo apropriado, próprio, de tal modo que ele mesmo excluiu a matéria trabalhista de seu projeto de código do processo civil, um projeto que vi que no dia da inauguração no salão paraninfo da universidade, alguém estava comprando. É um monumento histórico do direito processual uruguaio e nele excluia-se o direito processual trabalhista, por sua autonomia.
A segunda grande lição de Couture é que o processo trabalhista deve necessariamente evitar o desajuste com o direito substantivo, tem que acabar com o mito do processo como fim, pois se constitui mero instrumento, ferramenta de aplicação do direito do trabalho.
A terceira lição é a inadequação do processo comum para a solução dos conflitos trabalhistas. O princípio da igualdade das partes é simples suposição teórica que não verifica na realidade da relação jurídica de trabalho. Assim, o processo trabalhista tem que evitar que o litigante mais poderoso entorpeça os fins da justiça, tem que haver um processo especial em que a desigualdade compensatória seja efetivada.
Quero agregar um quarto argumento em defesa de um processo trabalhista autônomo, o art. 36 da Carta Interamericana de Garantias Sociais exige para todos os países da América uma jurisdição especial do trabalho e um processo trabalhista próprio. Diz o dispositivo que em cada estado deverá existir uma jurisdição especial de trabalho e um procedimento adequado para a rápida solução dos conflitos.
Com isso, concluo dizendo que devemos buscar a autonomia do direito processual do trabalho, do direito processual civil, do mesmo jeito que o direito material do trabalho é autônomo em relação ao direito substantivo civil.
Do ponto de vista teórico, tenho de acrescentar uma coisa, que é o necessário pertencimento do direito processual do trabalho ao direito do trabalho, ou seja, ao direito substantivo ao qual se liga, a tal ponto que todas as peculiaridades do direito processual do trabalho coincidem ou derivam das peculiaridades do direito do trabalho. Deveríamos falar em direito trabalhista processual, mais do que em direito processual do trabalho. E nesse ponto, também peço licença para fazer uma crítica à situação uruguaia. Vivemos há 15 ou 20 anos uma situação de desespecialização em matéria de direito processual trabalhista. Não temos em nosso país um processo do trabalho autônomo. Não temos um processo trabalhista especial. Somos o único país da América Latina nessa situação. O único que viola o art. 36 da Carta Interamericana de Garantias Sociais. Não é possível pensar que todos estão equivocados e só nós temos razão. Nesse ponto, estamos fora do avanço do direito trabalhista comparado. E essa situação de não ter um processo especial, autônomo, apropriado, tem razões que a agravam. Ao contrário do Brasil, não temos uma justiça totalmente especializada, não apenas por que só há juízes com exclusiva competência trabalhista em Montevidéu, como também por que não há no Uruguai uma Justiça Trabalhista estruturada e organizada com especialidade. O Juiz aqui não pode fazer carreira como juiz trabalhista. Ele pode passar de um Tribunal cível para um trabalhista, depois para um administrativo. Isso impede a especialização. E existe, ou existia, uma desvalorização dos juízes que atuam nas varas trabalhistas. Para os juízes trabalhistas, serem deslocados para um Tribunal civil de mesma hierarquia, é visto como promoção. Para um juiz civil ser deslocado para um Tribunal trabalhista é uma sanção. E na prática o deslocamento muitas vezes se deu em razão de uma sanção não declarada. Isso agrava os efeitos negativos da inexistência de um procedimento trabalhista próprio.
Concluindo, o sonho de um processo único para todas as matérias não tem correspondência com a realidade. É uma fantasia, ao menos em matéria trabalhista, que tem necessidade de processo especial.
Segunda conclusão: as peculiaridades ou princípios do direito substantivo do trabalho exigem um processo especial que assegure sua eficácia e uma magistratura especializada.
Terceira conclusão, dois grandes princípios são especiais nessa matéria e devem inspirar os juízes: o da proteção e o da celeridade.
Quarta conclusão, do ponto de vista teórico, técnico, o princípio protetor é o mais fundamental, todos dele decorrem, mas do ponto de vista prático, na realidade da vida, o mais importante é a celeridade. Uma boa proteção que demora anos, não é proteção.
Quinta conclusão, no Uruguai não contamos com um processo ou magistratura especializados, o que constitui uma das causas da ineficácia do direito substantivo do trabalho, do não-cumprimento dos direitos dos trabalhadores”.


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